
MANIFESTO CAPOEIRA
Movimento para Pesquisas e Práticas Culturais

CAPOEIRA: JOGO, DANÇA, LUTA, RITUAL BRINCADEIRA...
por Adan Parisi*
Você luta, dança ou joga capoeira?
Esta indagação é muito comum quando uma pessoa se aproxima pela primeira vez do universo da capoeira. Isto ocorre porque a capoeira é, em essência, um mosaico, tanto étnica quanto de linguagens culturais. Capoeira nasce afro-brasileira (africana, portuguesa, indígena), é, na fala dos antigos mestres, uma luta disfarçada em dança, é um rito, uma religião, um brinquedo, é, segundo Mestre Pastinha, tudo que a boca come. Portanto, a capoeira pode ser entendida como sendo um jogo em que temos a liberdade de vadiar (brincar), dançar e lutar, o que vai definir o momento é o toque do berimbau, clima da roda e a história dos jogadores.
Fase rural da capoeira
“No tempo em que o negro chegava
fechado em gaiola
Nasceu no Brasil
Quilombo e Quilombola
E todo dia Negro fugia
juntando a curriola
De estalo de açoite, de ponta de faca
e zunido de bala
negro voltava p’ra argola
No meio da senzala
E ao som do tambor primitivo
berimbau, maraca e viola
Negro gritava: - abre ala!
Vai ter jogo de Angola”
(Mauro Duarte/Paulo Cesar Pinheiro, Jogo de Angola)
Nas demandas dos canaviais e cafezais, na extração de minérios e madeiras, nas dores das senzalas e na luta e liberdade dos quilombos surgiu a capoeira. “Luta do negro em ânsia de liberdade” (Mestre Pastinha), uma das formas que os negros, aqui escravizados, desenvolveram para resistirem aos processos desumanos que foram submetidos. Do aculturamento às chibatadas, as negaças da capoeiragem possibilitaram aos povos negros cultuarem seus orixás, manterem sua corporeidade, subverterem à “desordem” oficial e, recriarem, em solo brasileiro, comunidades africanas.
Não há de fato disponibilidade significativa de documentos e registros que comprovem o surgimento da capoeira no contexto acima representado. Zumbi do Palmares, Ganga Zumba, Acotirene, dentre outras lideranças são figuras importantes no ideário da capoeira, Zumbi, em especial, é tido muitas vezes como sendo um guerreiro que utilizou esta luta corporal em seus confrontos, todavia, são informações que navegam entre lendas e fatos históricos. Contudo, é inegável que o contexto quilombola favorecia o fortalecimento da luta capoeira, uma vez que era um importante espaço de troca de saberes entre os grupamentos sociais constituintes.
Fase urbana
Rio de Janeiro, Recife, Salvador e Santo Amaro podem ser considerados como berços da capoeira. A história escrita desta luta começa de fato com o processo de urbanização brasileira e, em especial, nestas cidades. Santo Amaro, ainda sob a realidade rural, constituiu-se enquanto importante reduto de culturas africanas e as demais cidades, capitais importantes em nosso processo de formação, foram construídas a parte da força da mão de obra escrava e, portanto, traz em seus corpos a capoeira. No Rio de Janeiro e em Recife, acompanhamos processos similares na trajetória da capoeira, onde a repressão policial quase a extinguiu, contudo, nas negaças e astúcias dos capoeiristas, nasceram a Pernada Carioca e o Frevo, brinquedos populares que não estavam retratadas no código Penal e, decorrente disto, não poderiam ser reprimidas como a capoeira. Já em Salvador, a capoeira teve intenso diálogo com o Turismo. Obviamente que a capoeira foi reprimida pelas forças do Estado em Salvador, contudo, a necessidade de identidade nacional fez da capoeira um dos símbolos da cultura baiana e brasileira, ainda na Era Vargas. Portanto, mesmo a capoeira tendo diversos berços, a arte que conhecemos hoje parte, quase que exclusivamente, do legado baiano, seja este dos antigos mestres angoleiros de Salvador e do Recôncavo ou de Mestre Bimba com a Regional.
Mestre Bimba e a criação da Luta Regional Baiana
A capoeira Regional é uma vertente da capoeira, criada na década de 20, em Salvador/BA, por Manoel dos Reis Machado, o Mestre Bimba. Mesclando movimentos do Batuque, da Capoeira primitiva e de algumas modalidades de lutas asiáticas, Bimba formatou um método sequencial de ensino, bem como cursos específicos que iam das situações de jogo da capoeira até a aprendizagem de movimentos para defesa pessoal. Assim como o ensino dos movimentos, Bimba também desenvolveu toques de berimbau específicos da Regional, conhecimento que regia a roda da Regional pelas mãos do Mestre Charangueiro. Em cada etapa do ensino, o discípulo recebia um lenço, sendo estes nas cores: azul, amarelo, vermelho e branco.
Curiosidades:
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Charanga é o nome do conjunto de instrumentos musicais utilizados na Capoeira Regional (dois pandeiros de couro e um berimbau);
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Banguela, São Bento Grande, Amazonas, Cavalaria, Idalina, Iuna, Santa Maria e o Hino da Regional são os toques de berimbau característicos da Capoeira Regional.
“Em 1928, eu criei, completa, a Regional, que é o batuque misturado com a angola, com mais golpes,
uma verdadeira luta, boa para o físico e para a mente.”
(Mestre Bimba)
Capoeira Angola: Reflexões acerca de sua trajetória
Diferentemente da Capoeira Regional, quando falamos em capoeira Angola, falamos em várias escolas tradicionais e vários mestres. Vicente Ferreira Pastinha, o Mestre Pastinha, fundou em 1941 o Centro Esportivo de Capoeira Angola em Salvador/BA, sendo referendado como o patrono da Angola, uma vez que atuou de modo singular para organização e expansão da Angola, desde ações mais práticas como utilização de uniforme e definição dos instrumentos musicais até a elaboração filosófica e poética de sua vertente. Atualmente, há um importante coletivo de mestres angoleiros que formam a base das escolas tradicionais da Capoeira Angola: Aberrê, Canjiquinha, Caiçara, Waldemar da Paixão, Alípio, Ananias, Curió, Lua de Bobó, Boca Rica, Janja, Moraes, Paulo dos Anjos, Traíra, João Pequeno, João Grande, Claudio, Cobra Mansa dentre outras personalidades.
Curiosidades:
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Bateria é o nome do conjunto de instrumentos musicais utilizados na Capoeira Angola (Três Berimbaus – Gunga, Médio e Viola, dois pandeiros, atabaque, agogô e reco-reco)
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São Bento Pequeno, São Bento Grande, Angola, Angolinha são alguns dos toques de berimbau utilizados nas rodas de Capoeira Angola.
Capoeira...
“Seu princípio não tem método. Seu fim é inconcebível ao mais sábio dos Mestres".
(Mestre Pastinha)
A mundialização da capoeira
O processo de desenvolvimento da capoeira ao longo de todo o século passado foi marcado por fases muito distintas entre si, porém, que de certa forma foram complementares. O fato é que na década de 1960 a capoeira inicia um processo muito forte de expansão, culminando na ocupação de espaços em todo Brasil e, em grande parte da Europa e EUA, dentre outras regiões. Decorrente disto, a capoeira influenciou e sofreu influencias das culturas locais que ainda não faziam parte de seu corpo. Observamos isto desde a apropriação de movimentos de outras modalidades (ginastica, lutas, dança) até o modo de organização empresarial que muitos grupos se espelham atualmente.
Logo, a partir deste período começamos a conceber a capoeira pra além das escolas tradicionais da Angola e Regional, retratando agora a existência de outras formas de ensino e prática da capoeira sendo estas, comumente categorizadas em um estilo chamado contemporânea. Todavia, esta nomenclatura não condiz com o universo amplo e diverso característico da capoeira atual, pois há uma infinidade de grupos e mestres com filosofias e práticas de trabalho diversas, podendo ou não apresentar características próximas.
Nas décadas de 1960/1970 tivemos o surgimento e a rápida expansão do Centro Cultural Senzala que trazia uma nova proposta de ensino da capoeira a partir de técnicas características. Em 1980, presenciamos um forte movimento de resistência da Capoeira Angola, principalmente com Mestre Moraes/GCAP. Em 1990, a Regional com Mestre Nenel/FUMB amplia suas ações de continuidade dos ensinamentos de Mestre Bimba. O Grupo Abadá regido por Mestre Camisa ganha evidência por seu modelo organizacional e proposta técnica. Por ações como estas, é que presenciamos, hoje, um mosaico capoeirístico que apresenta desde posturas mais radicais em manutenção de tradições ancestrais até ações que vislumbram a esportivização da capoeira.
"A capoeira é um organismo vivo, ela evolui de acordo com as suas necessidades”
Mestre Canjiquinha

* contramestre da Manifesto Capoeira
**este texto faz parte do material de divulgação do Encontro SESC de Capoeira do ano de 2014, cujo objetivo é a aproximação do público interessado com a história e desenvolvimento da cultura capoeira.